sábado, 28 de novembro de 2020

A guerra religiosa do século IV e o nosso tempo

A Igreja avança sempre vitoriosa na História, segundo os desígnios imprevisíveis de Deus. Os primeiros três séculos de perseguição atingiram o seu auge sob o imperador Diocleciano (284-305). Tudo parecia perdido. O desânimo foi uma tentação para muitos cristãos, entre os quais houve os que perderam a Fé.

Mas aqueles que perseveraram tiveram a imensa alegria, alguns anos depois, de ver a Cruz de Cristo brilhar sobre o lábaro de Constantino na batalha de Saxa Rubra (312). Esta vitória mudou o curso da História. O Édito de Milão de 313, que concedeu liberdade aos cristãos, derrubou o senatusconsulto de Nero, que proclamava o Cristianismo como “superstitio illicita”. A cristianização pública da sociedade iniciou-se num clima de entusiasmo e fervor. 

Em 325, o Concílio de Niceia pareceu marcar a revivescência doutrinária da Igreja, com a condenação de Ário, que negava a divindade do Verbo. Em Niceia, graças à contribuição decisiva do diácono Atanásio (295-373), mais tarde Bispo de Alexandria, definiu-se a doutrina da “consubstancialidade” da natureza das três Pessoas da Santíssima Trindade. 

Nos anos seguintes, entre a posição ortodoxa e a dos heréticos arianos, fez caminho um “terceiro partido”, o dos “semiarianos”, divididos em várias correntes. Reconheciam certa analogia entre o Pai e o Filho, mas negavam que Ele fosse “gerado, não criado, da mesma substância do que o Pai”, como afirmou o Credo Niceno. Substituíram a palavra homoousios, que significa “a mesma substância”, pelo termo homoiousios, que significa “de substância similar”. 

Os hereges arianos e semiarianos entenderam que o seu sucesso dependeria de dois factores: o primeiro era permanecer dentro da Igreja; o segundo, obter o apoio do poder político – de Constantino, portanto, e depois de seus sucessores, o que de facto aconteceu. Uma crise nunca antes conhecida irrompeu dentro da Igreja e durou mais de 60 anos. 

Ninguém a descreveu melhor do que o Cardeal Newman no seu livro "Os arianos do século IV", publicano em 1833, com o qual conseguiu colher  todas as nuances doutrinárias da questão. Um estudioso italiano, Prof. Claudio Pierantoni, traçou um esclarecedor paralelo entre a controvérsia ariana e a controvérsia sobre a exortação apostólica Amoris laetitia. Mas, já em 1973, Dom Rudolf Graber (1903-1992), Bispo de Regensburg, recordando a figura de Santo Atanásio no décimo sexto centenário da sua morte, comparou a crise do século IV com a do Concílio Vaticano II (Athanasius und die Kirche unserer Zeit: zu seinem 1600 Todestag, Kral 1973). 

Atanásio, graças à sua fidelidade à ortodoxia, foi severamente perseguido pelos seus próprios irmãos e forçado cinco vezes, entre 336 e 366, a abandonar a cidade da qual era bispo, passando longos anos de exílio e de lutas árduas em defesa da fé. Duas assembleias de bispos, em Cesareia e Tiro (334-335), condenaram-no por rebelião e fanatismo. E em 341, enquanto um Concílio de 50 bispos proclamava em Roma a sua inocência, o Concílio de Antioquia, com a presença de mais de 90 bispos, ratificava os sínodos de Cesareia e Tiro, e colocava um ariano no trono episcopal de Atanásio. 

O posterior Concílio de Sárdica, no ano 343, terminou com uma cisão: os Padres ocidentais declararam ilegal a deposição de Atanásio e reconfirmaram o Concílio de Niceia; os orientais condenaram não apenas Atanásio, mas também o Papa Júlio I, mais tarde canonizado, que o apoiara. O Concílio de Sirmio, em 351, procurou um meio termo entre a ortodoxia católica e o arianismo. No Concílio de Arles de 353, os Padres, incluindo o legado de Libério, que sucedera como Papa a São Júlio I, assinaram uma nova condenação de Atanásio. Os bispos foram forçados a escolher entre a condenação de Atanásio ou serem exiliados. São Paulino, Bispo de Trier, foi praticamente o único que lutou pela fé de Niceia. 

Exilado na Frígia, ali morreu em consequência dos maus-tratos sofridos nas mãos dos arianos. Dois anos mais tarde, no Concílio de Milão (355), mais de trezentos bispos ocidentais assinaram a condenação de Atanásio, enquanto outro Padre ortodoxo, Santo Hilário de Poitiers, era banido para a Frígia por sua inflexível lealdade à ortodoxia. 

Em 357, o Papa Libério, vencido pelo sofrimento do exílio e pela insistência de seus amigos, mas também impulsionado pelo “amor à paz”, subscreveu a fórmula semiariana de Sirmio e rompeu a comunhão com Santo Atanásio, declarando-o separado da Igreja romana, pelo uso do termo “consubstancial”, como o testemunham quatro cartas de Santo Hilário (Manlio Simonetti, La crisi ariana del IV secolo, Institutum Patristicum Augustinianum, Roma 1975, pp. 235-236). Sob o pontificado do próprio Libério, os Concílios de Rimini (359) e de Selêucia (359), que constituíam um único grande Concílio representando o Ocidente e o Oriente, abandonaram o termo “consubstancial” de Niceia e estabeleceram um equívoco “meio termo” entre os arianos e Santo Atanásio. A heresia desenfreada parecia ter vencido na Igreja. 

Os Concílios de Selêucia e Rimini não estão computados hoje pela Igreja entre os oito concílios ecumênicos da Antiguidade, mas mesmo assim contaram com até 560 bispos, a quase totalidade dos Padres da Cristandade, além de terem sido definidos como “ecuménicos” por contemporâneos. Foi então que São Jerónimo cunhou a expressão segundo a qual “o mundo gemeu e percebeu com espanto que se tornara ariano” (Dialogus adversus Luciferianos, n°. 19, em PL, 23, col. 171). 

O que é importante ressaltar é que não se tratou de uma disputa doutrinária limitada a alguns teólogos, nem um simples entrechoque de bispos no qual o Papa deveria agir como árbitro. Foi uma guerra religiosa em que todos os cristãos estavam envolvidos, desde o Papa até os últimos fiéis. Ninguém se trancou em seu bunker espiritual, ninguém permaneceu na janela como espectador silencioso do drama. Todos desceram para combater nas trincheiras, em ambos os lados do embate. Não era fácil naquele momento alguém entender se seu bispo era ortodoxo ou não, mas o sensus fidei era a bússola para se orientar. 

Falando em Roma no dia 7 de abril de 2018, o Cardeal Walter Brandmüller recordou que “o sensus fidei age como uma espécie de sistema imunológico espiritual que faz os fiéis reconhecer e rejeitar instintivamente quaisquer erros. Nesse sensus fidei repousa, portanto, independentemente da promessa divina, até mesmo a infalibilidade passiva da Igreja, ou seja, a certeza de que a Igreja, em sua totalidade, jamais poderá incorrer em uma heresia”. 

Santo Hilário escreve que durante a crise ariana os ouvidos dos fiéis que interpretavam em sentido ortodoxo as afirmações ambíguas de teólogos semiarianos eram mais piedosos que os corações dos sacerdotes. Os cristãos que haviam resistido durante três séculos aos imperadores resistiam agora a seus próprios pastores, em alguns casos até mesmo ao Papa, culpados, se não de aberta heresia, pelo menos de grave negligência. 

Monsenhor Graber recorda as palavras do livro Athanasius (1838), do escritor Joseph von Görres (1776-1848), publicado na época da prisão do Arcebispo de Colônia [um lance da Kulturkampf bismarckiana], mas que conserva ainda hoje uma extraordinária atualidade: “A terra treme sob os nossos pés. Pode-se presumir com certeza que a Igreja sairá ilesa de tal ruína, mas ninguém pode dizer e conjeturar quem e o quê sobreviverá. Nós, portanto, advertindo, recomendando, erguendo nossas mãos, gostaríamos de prevenir o mal mostrando os seus sinais. Inclusive os jumentos que carregam os falsos profetas encabritam-se, recuam e reprovam com linguagem humana a injustiça daqueles que os espancam e não veem a espada desembainhada (de Deus), que fecha seu caminho (Numeros, XXII, 22-35). Agi, portanto, enquanto é dia, porque à noite ninguém pode trabalhar. De nada serve aguardar: a espera não faz nada além de agravar todas as coisas”. 

Há ocasiões em que um católico é obrigado a escolher entre a covardia e o heroísmo, entre a apostasia e a santidade. Foi o que aconteceu no século IV, é o que está acontecendo hoje.

Roberto de Mattei in Corrispondenza Romana
(Tradução: Hélio Dias Viana,  Fratres In Unum)


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1 comentário:

Maria José Martins disse...

É pena, que a maioria dos Católicos--e eu incluo-me nesse grupo--não conheça, a fundo, toda a riqueza da luta, que envolveu o Crescimento da sua Igreja!
Talvez por isso, não saibamos VALORIZAR, verdadeiramente, o que os nossos Santos e Mártires conquistaram ao longo de 2000 e tal anos...para que, hoje, tenhamos o Reconhecimento, no mundo inteiro, do Seu Valor, para a Humanidade. E daí, as "forças demoníacas" não pararem de atentar contra Ela!
E que o POVO seja ignorante, ainda se compreende...mas que os Seus Guardiões ALINHEM nesse PROJETO DIABÓLCO, para A destruir, é muito triste!
Ao pretender ANULAR toda a SUA TRADIÇÃO milenar, estão, também, a destruir tantas Graças e Bênçãos conseguidas pelo Sofrimento e até Martírio, de tantas almas Vítimas. E, segundo desabafos de Jesus, na Obra "O Evangelho como me foi revelado": "...a Minha Igreja tirada dos gonzos pelos Seus próprios ministros! E sou EU que A sustento, com a ajuda das ALMAS VÍTIMAS! Porque eles, Sacerdotes, somente usam as VESTES , mas não a Alma de um VERDADEIRO SACERDOTE, ajudando o ferver das ondas agitadas pela Serpente Infernal, contra a TUA BARCA, ó PEDRO!..."