domingo, 6 de novembro de 2022

O Santo que foi em jejum para a Batalha de Aljubarrota

Em Aljubarrota, antes que amanhecesse, começou a ouvir suas missas, e naquela tenda onde ele estava, clérigos davam o Santo Sacramento a quantos comungar queriam. Pouco antes da batalha chegaram-lhe alguns parlamentários, entre eles seu irmão Diogo, e por duas vezes observou-lhes: sois mais numerosos e melhor preparados, maior porém é o poder de Deus e a sua ajuda. Não sei se sois hereges ou infiéis, mas sei que o vosso rei faria melhor em tirar-se da excomunhão. E durante todo esse dia conservou-se em jejum, por ser a vigília de Santa Maria d'Agosto.

Impressionante, quase lendária, é a sua atitude em Valverde: Nuno a rezar, escondido entre penhascos, no mais aceso da luta, quando as suas hostes estavam na iminência de uma derrota fatal. Mesmo informado do perigo, pelos que angustiados o encontraram, terminou calmamente as suas orações. Ainda não chegara a sua hora. Mas quando se levantou, era outra vez o guerreiro destemido e sempre vencedor. Mas disse mal, não era outra vez o guerreiro, pois não o deixara de ser quando estava a rezar. Nuno era diferente de nós, que assim o julgamos.

Criado e crescido no serviço de Deus, nele interpenetravam-se o natural e o sobrenatural, ou mais exactamente: toda a sua actuação natural era aperfeiçoada e elevada pelo sobrenatural. Vivia na presença de Deus em todos os momentos e circunstâncias. Os seus afazeres e obrigações de estado não o afastavam de Deus - cumpria-as, olhos fitos em Deus." (Manuel Maria Wermers, O. Carm.)

"Todos os dias ouvia duas missas e três nos sábados e domingos (...) confessava-se amiúde e comungava quatro vezes por ano: pelo Natal, Páscoa, Pentecostes e Santa Maria de Agosto, o que se admirava muito, visto os leigos, então, quase só comungarem pela Quaresma. Diariamente, rezava as suas Horas, levantando-se pontualmente a rezar Matinas à meia-noite, como se fosse um religioso; e isto enquanto viveu no mundo. Jejuava às quartas-feiras, sextas e sábados, e guardava todas as festas e dias prescritos pela igreja. Do jejum nunca se dispensava mesmo que viesse a cair nos dias em que havia de dar batalha. Este exercício de mortificação observou com o rigor costumado nos dias em que se travaram as batalhas dos Atoleiros e Aljubarrota, pois esta ocorreu na Vigília de Nossa Senhora da Assunção, 14 de Agosto de 1385, e aquela na Quarta-Feira Santa, 16 de Abril de 1384." J. Vaz de Carvalho, S. J.

Logo a seguir à Batalha de Aljubarrota o Santo Condestável pôs mãos à obra de tributar à Senhora a sua homenagem. Tal facto de o Beato Nuno ter começado a planear uma tão grandiosa obra em honra de Maria levou a crer a vários autores que o mosteiro de Santa Maria tivesse resultado de um voto feito durante a Batalha de Aljubarrota ou Valverde. Crê-se, porém, mais plausível a opinião de Pereira de Sant'Anna que refere que a fundação não provinha de um determinado favor, senão das múltiplas mercês que a Virgem lhe havia concedido em várias ocasiões.

O beato Nuno deve ter sentido muitas vezes a mão protectora da Virgem a quem tão ternamente amava. Nada mais tolerável que, vivendo a Pátria em paz, pensasse em retribuir à Senhora os favores recebidos. Em 1386, decorrido um ano após Aljubarrota, já estava alcançada licença do monarca e do Pontífice Urbano VI para a fundação do mosteiro. Foi lançada a primeira pedra em Julho de 1389. O imenso trabalho dos alicerces prolongou-se até ao ano de 1397 devido à fraca consistência do terreno e só em 1407 eram possíveis os primeiros actos cultuais no templo, não havendo por agora acomodação no edifício do claustro para os frades.

Pela bula de 1386 do Papa Urbano VI vê-se que o Condestável não havia ainda determinado os moradores do convento, ou não tinha ainda, pelo menos, tornado pública a sua decisão. Quando cerca de 1392, escreveu ao vigário-geral dos carmelitas de Moura convidando-os a tomar conta do seu mosteiro, fala de conversas havidas já anteriormente a esse respeito. Pelo menos no ano de 1392 não era segredo para o vigário-geral que o convento de Lisboa era destinado aos Carmelitas. Que o Condestável desde o início havia pensado nos Carmelitas não no-lo diz a História. Todavia compreende-se que teria feito questão para o templo da Santa Maria, sua homenagem à Mãe de Deus, ser entregue a quem reconhecia os mais devotados à Virgem.

Ao entrar o portal do Mosteiro de Santa Maria do Carmo, onde acabou os seus dias, outra coisa não tinha além da samarra de pano que vestia, e vestia sempre até que Deus o levou". O desapego atingia o auge. Longe do mundo podia agora sem peias entregar-se a Deus e à Santa Virgem. Nuno de Santa Maria era o seu nome, porque quis ser filho devotado da sua Santíssima Mãe. Já de idade avançada e tendo sempre sido o general a quem todos e tudo se curvava, podemos compreender a ígnea espada, animava-o a usar contra si as armas do espírito de que fala o capítulo XV da Regra.

Não dava tréguas à própria natureza; não era ele um incansável militante de Cristo? Os pobres, que o rodeavam à porta do convento, constituíam a sua felicidade, pois via neles a imagem do Senhor. Não são do Senhor as palavras de "aquilo que fizerdes a um dos mais pequeninos a mim o fazeis"? Já no mundo se tinha dedicado a esta virtude da perfeição cristã: a caridade. Não seria perfeito religioso se o não fosse cristão, ele o sabia; daí a sua ânsia da prática do bem para os outros, a quem amava como ao próprio Jesus. A si mesmo não poupava; não lhe bastava a humílima condição que levava no mosteiro.

O mundo também devia saber que o grande Condestável era uma aragem de glorioso passado. Saiu a esmolar pelas ruas, pedindo a caridade de um pedaço de pão e um copo de água. Quem havia de reconhecer, neste frade mendigo, o herói de Atoleiros. Aljubarrota e Valverde? À espiritualidade Carmelita, a essa sim, devia aplicar-se com todas as forças da alma. Não lhe bastava a solidão do convento e o silêncio da sua cela; construiu na cerca do mosteiro uma pequena ermida em honra da Mãe de Deus onde, horas a fio, meditava em doces colóquios com os seus amigos. Era uma alma profundamente Carmelita, imbuída do espírito da Ordem.

O essencial para o monge carmelita é a união com o Senhor, por meio de Sua Mãe. B. Nuno compreendeu-o perfeita e completamente. Na sua pobre cela apenas quis a imagem de Cristo crucificado. As paredes eram nuas: só se viam nelas uns cilícios e disciplinas. Na ermida do claustro do convento conservava uma imagem da Virgem da Assunção; e nada mais... Passava longas horas diante do Santíssimo Sacramento a rezar, sempre a rezar... Buscando contacto com o Criador em cuja presença devia viver, conforme disse, "como pedra no seu centro".

Nove anos passou dentro de paredes do convento preparando-se para o derradeiro combate. Não conseguiu, no entanto, aquilo que era sua tenção: ser esquecido pelo mundo! Mas sucedeu o contrário: a sua fama de santidade passava irradiante para fora dos muros do mosteiro e, através dos séculos, chegou até nós."


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