Escrevo de Glasgow, nas latitudes frias e chuvosas da
Escócia. Não é o círculo polar Ártico, mas em Agosto há sol até muito tarde:
uma luz suave, a iluminar esta paisagem de relva e verdura, sulcada todo o ano
por regatos. Com outra luminosidade e com menos vento, os Açores lembram este germinar
de vida, que só é possível em terras onde escorre água em tanta abundância.
Passo as manhãs a assistir a umas conferências magistrais
sobre história da Igreja na Grã-Bretanha. Além da biblioteca que nos rodeia, o
professor trouxe dois caixotes de livros, que considerou «essenciais». Cada um
começou por uma ponta, mas ninguém tem dúvidas de que vamos chegar ao fim do
mês sem ter esgotado a colectânea do «indispensável». As aflições do Almada Negreiros!
Não vou contar numa página o que tão grandes autoridades
académicas condensaram em dezenas de volumes, mas atrevo-me a partilhar
impressões.
A principal é que o Reino Unido está a assistir a uma
revolução cultural empolgante, que acelerou na última década. Há 200 anos, os
católicos desta ilha eram uma minoria ínfima, à beira da mendicidade,
considerados pela população como gente suja, com doenças e iletrada. De facto,
eram geralmente imigrantes muito pobres. A lei proibia o acesso dos católicos ao
funcionalismo público, à universidade e a outras instituições.
No século XIX, a Igreja católica voltou a ter bispos, vários
deles recém-convertidos, por exemplo o Cardeal Manning, que tinha sido um
pastor anglicano, casado e depois viúvo. Por volta de 1850, começou um conjunto
de conversões de grandes intelectuais, artistas e escritores: Henry Benson,
John H. Newman, G. Manley Hopkins, G. K. Chesterton, Ronald Knox, Siegfried
Sassoon, Evelyn Waugh, Edith Sitwell, Graham Greene, Muriel Spark, além de outros
que já nasceram em famílias católicas como o realizador Hitchcock, ou os
escritores Hilaire Belloc e J.R.R. Tolkien, o célebre político Lord Acton, o
compositor Edward Elgar.
No período até à Segunda Guerra Mundial, o número de
católicos ingleses multiplicou-se por muito e começaram a notar-se na vida
pública. Aos poucos, foram admitidos nalgumas repartições do Estado. O tempo do
imediato pós-Guerra e do Concílio foi uma época atribulada, embora não tanto
como para outras confissões religiosas.
Actualmente, está em curso uma transformação acelerada. Neste
princípio do século XXI, já chegaram ao Governo alguns católicos, inclusive de
Missa diária. As escolas católicas são consideradas as melhores do país. Nunca
houve tantas conversões.
Ainda assim, o que chama a atenção é a reacção dos que não
são católicos. Uma sacerdotisa anglicana declara que o seu principal livro é o
Catecismo da Igreja Católica. As autoridades protestantes entusiasmam-se com as
recentes Encíclicas papais. O Chefe da Igreja Anglicana anuncia publicamente
que escolheu um director espiritual católico. A «speaker» do Parlamento (a
Presidente do Parlamento) recebeu o Papa Bento XVI declarando que eles o
consideravam a maior autoridade moral do mundo. Bastantes jornais, que há
poucos anos criticavam duramente a Igreja católica, exprimem agora um respeito
sem precedentes.
Isto não quer dizer que a população das ilhas britânicas
tenha passado a ser católica ou compreenda bem a doutrina da Igreja, mas é algo
que não se via desde há 400 anos.
Sobretudo, o que impressiona é a mudança na Universidade. Por
exemplo, os maiores historiadores ingleses – de Cambridge, de Oxford, das
outras universidades –, a maioria não católicos, são «revisionistas», isto é, ensinam
a história da Reforma Católica exactamente ao contrário do que ensinaram até
agora. Referindo-se a si próprio, um dos convertidos ingleses mais conhecidos dizia:
«to deepen in history is to cease to be protestant» (aprofundar o conhecimento
da história é deixar de ser protestante). De facto, é isso o que está a
acontecer nestas ilhas.
Olho com pena para o nosso Portugal em contramão, alheio a
este fenómeno de evolução no mundo britânico. Porque não é a cultura do Reino
Unido que vai em contramão, apesar de aqui os carros andarem pela esquerda.
A Universidade de Glasgow, fundada em 1451. |
José Maria C. S. André in «Correio dos Açores»,
«Verdadeiro Olhar», 17-VIII-2014
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