domingo, 14 de agosto de 2016

Em directo, da revolução ugandesa


Escrevo do Uganda, paraíso da «East Africa». Em frente, estende-se o lago Victoria, aproximadamente circular, com o diâmetro da distância de Lisboa ao Porto (340 km por 230 km) e um recorte de 5.000 km, equivalente a 4 viagens de Lisboa aos Açores. Ao meio-dia, o sol brilha quase na vertical sobre esta imensa superfície de água, porque estamos precisamente no equador. A luz é deslumbrante. No entanto, a altitude do país é semelhante à das Penhas Douradas, na Serra da Estrela, e a conjunção do equador africano com esta altitude produz um clima de sonho, que lembra os dias mais temperados da Primavera nas latitudes portuguesas.

A história do Uganda é singular e as pessoas com quem me cruzei têm uma simplicidade e uma capacidade de acolhimento invulgares. É fácil meter conversa com desconhecidos. O povo é descontraído, divertido, disposto a ajudar. Respira-se paz e, pelo que me disseram, anda-se à vontade. Quem diria que é um país revolucionário para a mentalidade europeia!
Antes de partir de Lisboa, fui à consulta do viajante, para fazer as vacinas necessárias e ouvir os conselhos médicos pertinentes. Quase tudo bem. Tudo bem, salvo um pormenor, o apelo insistente a usar o preservativo para prevenir a Sida.

Os médicos sabem que um casal fiel ou uma pessoa que não tem relações sexuais jamais contraem doenças sexualmente transmissíveis e não precisam do preservativo. O curioso é não se pôr a hipótese de um casal ser fiel ou de uma pessoa solteira não fazer turismo sexual. Não discuto moral, queixo-me de falta de educação.

Ao desembarcar no Uganda, vê-se o contraste na forma de lidar com a Sida. No princípio dos anos 90, a percentagem da população ugandesa contagiada com Sida era muito alta e a epidemia alastrava galopante. Somando outras doenças muito graves, a situação era aflitiva. Tão crítica, que o Governo tomou uma medida inédita. Lançou o programa ABC, para promover o sentido de responsabilidade. «A» era a Abstinência para as pessoas solteiras; «B» era «Being faithful» (ser fiel) para as pessoas casadas; «C» era «Condom» (preservativo) para os que não queriam o «A» e o «B». Esta mobilização nacional acabou com os namoros irresponsáveis e os casamentos à experiência. A mudança foi notória e, em 10 anos, a percentagem de ugandeses com Sida desceu para níveis inferiores aos de muitos países considerados seguros.

A parte que correu bem foi o «A» e o «B». A população aderiu em massa e apostou numa vida familiar mais madura. Menos divórcios, menos crianças abandonadas, menos gravidezes precoces, famílias mais estáveis, com níveis de satisfação mais elevados e melhores condições de educação da juventude. A parte que continua a ter dificuldade em ver-se livre da Sida é o clube do «C», porque o preservativo, embora seja uma barreira, não evita completamente a passagem do vírus. Se a pessoa escapa de uma, nada garante que não fique infectada na vez seguinte e quem repete as situações de risco expõe-se francamente a ser contagiado. É esse o problema da prostituição e dos homossexuais activos, que não adoptam o «A» e o «B» e para quem o «C» se demonstrou uma jangada de pedra. Continuam a morrer de Sida e de outras doenças, mas os problemas do «C» ficaram circunscritos a uma percentagem pequena da população do Uganda.

A estratégia ABC do Uganda foi um êxito internacional, evidente e único no mundo. Ninguém tem dúvidas. Apesar disso, o programa é muito criticado no mundo ocidental, por ser uma proposta de fidelidade, classificada como oposta à liberdade sexual e reprodutiva. Para muitos no Ocidente, erradicar a Sida com fidelidade seria fácil, o desafio é fazê-lo mantendo certos estilos de vida.

Em Portugal, onde estamos pouco habituados a ter opinião própria, preferimos imitar o que vemos à volta e, por isso, continuamos inscritos no «C». A indústria talvez agradeça. A população do Uganda acha-nos decadentes. Li há três dias num jornal de cá: «...you change, or you fade out» (vocês mudam, ou extinguem-se).
José Maria C.S. André in Correio dos Açores, 8-VIII-2016


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2 comentários:

pie disse...

Portanto, a castidade deve ser promovida porque evita a SIDA...

Mas se a 'indústria' descobrir um preservativo mais eficaz ou uma vacina, porque razão seria necessário promover o A e o B?

José Maria C. S. André disse...

Concordo.

A sociedade deve promover o sentido de responsabilidade também por essa razão.

Abraço do Uganda,
José Maria A.