sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O mito de que os Cristãos recorriam ao 'deus-tapa-buracos'

Muitos dizem que não acreditam em Deus porque não precisam de um Deus para explicar o que não conhecem. Mas qualquer Cristão que saiba o mínimo sobre a sua Fé também não acredita num Deus assim. A fé dos Cristãos em Deus não assenta num deus-tapa-buracos. Pelo contrário, se o desconhecido estiver na própria natureza, um Cristão do século XXI vai procurar explicações na ciência e não na teologia.

O problema é que existe a ideia de que se hoje em dia um Cristão recorre à ciência, no passado nem sempre foi assim. Muitos julgam que, quando a ciência não estava tão avançada, os Cristãos e outros crentes usavam Deus para explicar fenómenos que não compreendiam, como o movimento dos planetas ou o aparecimento do arco-íris.

Mas a história da Ciência mostra que alguns dos principais cientistas da Europa Cristã não pensavam assim. Não só não recorriam a Deus para explicar a natureza, como em plena Idade Média escreveram explicitamente contra essa ideia. 

Vejam o que diz um um dos maiores historiadores de ciência num recente artigo:
Mestres que praticavam filosofia natural, as ciências matemáticas ou medicina, tipicamente tinham um forte sentido da autonomia dos seus métodos. Portanto as suas explicações naturais não desapareciam quando continuavam [os estudos] em teologia. 
Já no século XII, Gilbert de Poitiers [onde era Bispo] chamou a atenção para os diferentes significados de algumas palavras quando usadas em teologia e em filosofia natural. 
No século XIII, tanto o teólogo [Sto.] Alberto Magno e o mestre de artes Siger de Brabant asseguraram para si o direito e o dever de ignorar os milagres e a fé quando raciocinavam como physici (filósofos naturais). [O Bispo inglês] John Blund (d. 1248) não via problema nenhum em discordar com os santos sobre o mundo natural. Em matérias de fé, os santos eram porta-vozes do Espírito Santo, mas em "máterias naturais" (de rebus physicis), falavam apenas como homens, e portanto podiam-se enganar. 
No século XIV, o teólogo [e Bispo] Nicole Oresme discutiu muitas coisas inexplicáveis que, dizia ele, tinham ou eventualmente teriam explicações físicas: 
"Não há razão para recorrer aos céus, o último refúgio dos fracos, ou aos demónios, ou ao nosso glorioso Deus como se ele produzisse estes efeitos directamente, em vez de àqueles efeitos cujas causas nós julgamos serem bem conhecidas por nós." 
Entre os intelectuais, a ideia de que as causas secundárias eram necessariamente naturais era ampla, desde o uso de modelos mecânicos na astronomia ao incrível naturalismo do rabino e astrónomo Levi ben Gerson, que excluía os milagres acima da esfera da lua quando interpretava as escrituras. As conclusões sobre o mundo natural estavam desligadas dos milagres através de expressões como "de acordo com a física", "falando naturalmente", ou "de acordo com a luz da razão natural". O único ponto destas actividades era resolver problemas apenas com critérios acessíveis aos sentidos e ao intelecto.  
Michael Shank, "Natural Knowledge in the Latin Middle Ages" in Wrestling with Nature. The University of Chicago Press, 2011.


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