domingo, 29 de julho de 2018

Cardeal Müller alerta para o perigo que a Igreja se converta ao mundo e não a Deus

Entrevista do Catholic World Report (CWR) ao Cardeal Gerhard Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé

CWR: Desde 2014, tem havido, dentro da Igreja, uma contínua onda de conflitos e tensões que envolvem muitos bispos da Alemanha. Qual o contexto desse fenómeno? Qual é a fonte desses diversos conflitos sobre eclesiologia, Sagrada Comunhão e assuntos relacionados?

Cardeal Gerhard Müller: Um grupo de bispos alemães, com o seu presidente [i.e., da Conferência Episcopal] na dianteira, vêem-se como lançadores de tendências na Igreja Católica em direcção à modernidade. Eles consideram a secularização e a descristianização da Europa como um desenvolvimento irreversível. Por essa razão, a Nova Evangelização — programa de João Paulo II e Bento XVI — é, na visão deles, uma batalha contra o curso objetivo da história, assemelhando-se à batalha de Dom Quixote contra os moinhos de vento. Portanto, todas as doutrinas da fé que se opõem ao “mainstream”, ao consenso social, devem ser reformadas.

Uma consequência disso é a demanda para que se distribua a Sagrada Comunhão mesmo a pessoas sem a Fé Católica e também àqueles Católicos que não estão em estado de graça. Também estão na agenda: bênção para parelhas de pessoas do mesmo sexo, intercomunhão com protestantes, relativização da indissolubilidade do sacramento do matrimónio, introdução dos viri probati e abolição do celibato sacerdotal; aprovação de relações sexuais antes e fora do casamento. Essas são as metas, e para alcançá-las eles estão dispostos a aceitar até a divisão da conferência episcopal.

Os fiéis que levam a doutrina Católica a sério são rotulados como conservadores e empurrados para fora da Igreja, expostos a campanha difamatória dos media liberais e anti-católicos.

Os muitos bispos, a revelação da verdade e da profissão da Fé Católica é só mais uma variável no jogo de poder político intra-eclesial. Alguns deles citam acordos individuais com o Papa Francisco e pensam que as suas declarações em entrevistas com jornalistas e figuras públicas distantes de serem católicos oferecem uma justificativa mesmo para “diluir” verdades de Fé definidas, infalíveis (=dogmas). Tudo isso dito, estamos lidando com um patente processo de protestantização.

O ecumenismo, pelo contrário, tem a sua meta na plena unidade de todos os cristãos, que já está sacramentalmente realizada na Igreja Católica. O mundanismo do episcopado e do clero no século XVI foi a causa da divisão da cristandade, que é diametralmente oposta à vontade de Cristo, fundador da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. A doença daquela era é agora supostamente o remédio com o qual a divisão deve ser superada. A ignorância da Fé Católica naquela época era catastrófica, especialmente entre Bispos e Papas, que se dedicavam mais à política e ao poder do que em testemunhar a verdade de Cristo.

Hoje, para muitos, ser aceite pelos media é mais importante que a verdade, pela qual devemos também sofrer. Pedro e Paulo sofreram o martírio por Cristo em Roma, centro do poder naquela época. Eles não eram celebrados pelos grandes desse mundo como heróis, mas zombados como Cristo na cruz. Nunca nos devemos esquecer a dimensão martirológica do ministério Petrino e do múnus episcopal.

CWR: Por que razão alguns bispos alemães desejam permitir o acesso à Sagrada Comunhão a protestantes?

Cardeal Müller: Nenhum bispo tem autoridade para administrar a Sagrada Comunhão a cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. Apenas em situações de perigo de morte um protestante pode pedir a absolvição sacramental e a Sagrada Comunhão como viaticum, se ele compartilha de toda a Fé Católica e, assim, ingressa em plena comunhão com a Igreja Católica, embora não tenha ainda declarado sua conversão oficialmente.

Infelizmente, até Bispos já não conhecem a Fé Católica na unidade da comunhão sacramental e eclesial, e justificam a sua infidelidade à Fé Católica com uma suposta preocupação pastoral ou com explicações teológicas que, entretanto, contradizem os princípios da Fé Católica. Toda a doutrina e praxis devem ser fundamentadas na Sagrada Escritura e na Tradição Apostólica, e não devem contradizer os pronunciamentos anteriores do Magistério da Igreja. Este é o caso da permissão para cristãos não católicos receberem a Comunhão durante a Santa Missa.

CWR: Como avalia, em primeiro lugar, o estado da Fé Católica na Alemanha e, depois, na Europa? Pensa que a Europa pode ou irá recobrar o sentido de sua identidade cristã anterior?

Cardeal Müller: Há muitas pessoas que vivem a sua Fé, amam a Cristo e a sua Igreja, e colocam toda a sua esperança em Deus, na vida e na morte. Mas, entre eles, há muitos que se sentem abandonados e traídos pelos seus pastores. Ser popular perante a opinião pública é, actualmente, critério para supostamente ser um bom Bispo ou Padre. Experimentamos agora uma conversão ao Mundo, não a Deus, contrariamente à afirmação do Apóstolo Paulo: “Por acaso eu procuro o favor dos homens, ou de Deus? Estou tentando agradar aos homens? Se ainda estivesse a agradar aos homens, não deveria ser servo de Deus.” (Gal 1, 10).

Precisamos de Padres e Bispo cheios do zelo pela casa de Deus, dedicados inteiramente à salvação dos seres humanos na peregrinação de Fé para a nossa casa eterna. Não há futuro para um Cristianismo "light”. Precisamos de cristãos com espírito missionário.

CWR: A Congregação para a Doutrina da Fé reiterou recentemente o ensino perene da Igreja de que as mulheres não podem ser ordenadas ao sacerdócio. Por que pensa que este ensinamento, que já foi repetido diversas vezes nos anos recentes, continua a ser contestado por muitos na Igreja?

Cardeal Müller: Infelizmente, actualmente, a Congregação para a Doutrina da Fé não é particularmente estimada, e seu significado para o primado Petrino não é reconhecido. O Secretariado de Estado e os serviços diplomáticos da Santa Sé são muito importantes para a relação da Igreja com diversos Estados, porém, a Congregação para a Doutrina da Fé é mais importante para a relação da Igreja com a sua Cabeça, da qual toda graça procede.

A Fé é necessária à salvação; a diplomacia Papal podem fazer muito bem ao mundo. Mas a proclamação da Fé e da doutrina não devem ser subordinados às demandas e condições dos actores do poder terreno. A Fé sobrenatural não depende de poderes terrenos. Na Fé é absolutamente claro que o Sacramento da Ordem só pode ser recebido validamente por um homem católico baptizado, porque apenas ele pode simbolizar e sacramentalmente representar Cristo como Esposo da Igreja. Se o ministério sacerdotal é compreendido como uma posição de poder, então essa doutrina da exclusividade das Sagradas Ordens a católicos de sexo masculino é uma forma de discriminação contra as mulheres.

Mas essa perspectiva de poder e prestígio social é falsa. Apenas se virmos toda a doutrina da Fé e dos sacramentos com olhos teológicos, e não em termos de poder, a doutrina da Fé sobre os pré-requisitos naturais para o sacramento da Sagrada Ordem e do matrimónio serão também evidentes para nós. Apenas um homem pode simbolizar Cristo enquanto Esposo da Igreja. Apenas um homem e uma mulher podem simbolicamente representar a relação de Cristo e da Igreja.

CWR: Recentemente apresentou a edição italiana do livro de Daniel Mattson, Why I Don’t Call Myself Gay [Por que não me chamo gay]. O que o impressionou no livro e na sua abordagem? Como se distingue de algumas abordagens “pro-gay” e posturas adoptadas por alguns Católicos? O que pode ser feito para explicar, em termos positivos, o ensinamento da Igreja sobre sexualidade, casamento e assuntos relacionados?

Cardeal Müller: O livro de Daniel Mattson foi escrito a partir de uma perspectiva pessoal. Ele é fundamentado em uma profunda reflexão intelectual sobre a sexualidade e o matrimónio, que o faz diferente de qualquer forma de ideologia. Portanto ajuda pessoas com atracção para o mesmo sexo a reconhecer a sua dignidade e a seguir um benéfico caminho no desenvolvimento da sua personalidade, e a não se deixarem ser usados como peças nos jogo de poder de ideológico. Um ser humano é uma unidade interior de princípios espirituais e materiais, e, consequentemente, uma pessoa e um sujeito livremente actuante de uma natureza que é espiritual, corpórea e social.

O homem é criado para uma mulher e a mulher para um homem. A meta da comunhão matrimonial não é o poder de um sobre o outro, mas, antes, a unidade num amor que se doa, no qual ambos crescem e juntos alcançam o objectivo em Deus. A ideologia sexual que reduz o ser humano ao prazer é hostil à sexualidade pois nega que a meta do sexo e do eros é agape. Um ser humano não pode permitir ser degradado ao status de um animal mais desenvolvido. Ele é chamado a amar. Apenas se amo o outro por si mesmo eu chego a mim mesmo; só assim sou libertado da prisão do meu egoísmo primitivo. Não se pode ser realizado às custas dos outros.

A lógica do Evangelho é revolucionária num mundo de consumismo e narcisismo. Pois apenas o grão de trigo que cai no chão e morre não permanece sozinho, mas produz muitos frutos. “Quem amar a sua vida perdê-la-á, e quem odiar a sua vida neste mundo a guardará para a vida eterna.” (Jo 12, 25)

Tradução: Fratres In Unum


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